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Sejam bem-vindos e bem-vindas a mais uma news do Clima.
A curadoria mensal de conteúdos, divagações e cutucos pra gente não desistir e se interessar mais pelo que acontece fora do nosso umbigo.
Nessa edição: sobre desistir, fracassar e fazer o L (mas na testa).
Ah, as palavras em laranja têm coisa, só clicar.
Pra quem cansou da gente, é possível se desinscrever a qualquer momento lá embaixo.
Chegamos na 10ª edição, então antes de mais nada: obrigada por acompanhar o Clima até aqui ♡.
Janeiro foi aquele mês de 38234 dias e bem tenso olhando pro Brasil e pro mundo: tentativa de golpe, Peru em chamas, divulgação da situação dos Yanomamis, escândalo da Americanas, e muita coisa vindo a tona do último desgoverno (finalmente).
Como seguir funcional e não cair num tipo de conformismo de sobrevivência?
Eu no caso não sei, mas depois de 20 dias sem acessar redes sociais, pular de cabeça em todos esses acontecimentos no começo de janeiro já deu uma bela sequelada.
A divagação do mês vai ser de um assunto muito querido por aqui: sobre o fracasso e o que a gente entende por isso. Estava escutando o último episódio do Caoscast que trouxe o tema da “Licença para desistir”. O que seria afinal?
Puxando os movimentos do mundo do trabalho, principalmente a Grande Resignação (nome horroroso por sinal) e suas derivações, eles falam como alguns grupos estão abandonando a ideia de que a meritocracia faz a vida e que devemos ser e dar o sangue no trabalho.
Talvez seja então diferente do que desistir, mas na real sair do feitiço do capitalismo internalizado e pisar na realidade (muitas vezes impulsionado por um burnout ou ataques de ansiedade) - porque a gente sabe que não existe espaço pra todo mundo se dar bem, mesmo com muito esforço.
Mas tem o ponto que eles também trazem: QUEM pode desistir? Será a desistência um recurso pra quem banca ($$$) ou atravessa todos os grupos? Claro que o acesso material influencia bastante nas escolhas de vida objetivas que temos, mas existe aí algo que permeia todas as classes.
A desistência e uma certa aceitação diante dela quando olhamos pro que consideramos uma vida de sucesso (status, dinheiro, cargos, corpo padrão, etc), pode nos ajudar a sair do individualismo que no fim nos traz muita culpa e ressentimento quando não a alcançamos (o que tô fazendo de errado?).
Mas aqui não tamo falando de desistir dos sonhos, de viver na indiferença e conformismo.
Mas é como a gente pode olhar pra gente mesma/o e se entender como parte desse todo, compreendendo como esse todo modula o jeito que a gente sente as coisas, que a gente interpreta o que acontece na vida (e contamos na terapia depois) - tudo isso depende 100% das condições materiais que temos e das relações subjetivas e valores que desenvolvemos influenciadas/as por esse sistema.
E quando falo sair do individualismo é tanto parar de se culpar e de se sentir uma merda, quanto querer transformar coletivamente o que tá errado, e não só a sua vida.
No livro Sobre Losers: fracasso, impotência e afetos no capitalismo contemporâneo, o filósofo Érico Andrade tece um raciocínio de que a crença suprema no esforço individual e suas promessas/consequências, quando levadas sem um pensamento crítico, pode fazer emergir um tipo de melancolia particular que constitui a figura do loser, “aquele que fracassa porque não se empenhou o bastante”, pois falhou na tentativa de vencer na vida.
Não é um livro muito fácil de ler (pelo menos pra mim), mas ele faz uma conexão que diversos autoras/as em diversas obras já fizeram de outras formas, que é relacionar a nossa subjetividade com o sistema econômico, mostrando as ligações entre a ideologia da alta performance, empreendedorismo, autoaperfeiçoamento e a ilusão de controle e liberdade x ansiedade e sensação de fracasso.
Dando uma resumida, o livro traz a tese de que, uma vez que internalizamos a crença de que 100% dos nossos fracassos (e sucessos) dependem apenas de nós - já que teoricamente somos seres livres independentemente das condições estruturais da sociedade - é “natural” que surja a figura do loser.
O loser é fruto dessa convicção de invulnerabilidade, autocontrole e controle do tempo, como se nós seres humanos tivéssemos poder sobre a acidentalidade da vida e sobre a natureza, alcançado através do deus-razão, rumo a um progresso crescente e infinito.
O autor define que o fracasso
“trata-se, portanto, de uma falha individual, um problema no interior do indivíduo que não foi capaz de dar vazão ao florescimento pleno de si. O indivíduo se subjetiviza como aquele que não dá conta de si mesmo. Torna-se impotente. Ele se demissiona de si mesmo. É a falência de si.” (pag 91)
O fenômeno abrange todas as classes sociais, e além disso dissolve a consciência de classe, uma vez que o loser não se revolta e se conscientiza sobre as origens estruturais de sua condição, mas o contrário: ele é o resignado, não encontra mais forças pra se reinventar e apoia os valores e as promessas do sistema (coachs, meritocracia, o discurso da elite, etc), que apenas servem para subjulgá-lo ainda mais.
Aqui não há revolta, apenas uma “letargia (tédio) longo e ininterrupto, inscrito na condição de loser.”
O empreendedorismo como ideologia internalizada é o que guia e sustenta essa perspectiva:
A ideia é clara: todos são empreendedores de si mesmo. Não importa quem parte na frente na corrida, as diferenças estruturais de classe entre os competidores, mas importa apenas os que se dispõem a concorrer, a fazerem sacrifícios para superarem as dificuldades. Mesmo um assalariado, com baixo salário, se toma como um empreendedor de si mesmo; responsável pelo seu florescimento, pelos seus fracassos e vitórias. Só os que assumem essa tarefa se constituem como vidas que ideologicamente se assentam no modelo de autorrealização. Só quem está no sistema pode se definir como senhor de si mesmo. (pag 86)
Ele discorre sobre isso entendendo que não existe o indivíduo sozinho, que é independente do todo como muita gente acredita por aí, já que estamos inseridas/os em relações de todos os tipos e somos influenciados pela cultura e por todas as interações que permeiam as nossas vidas.
E essa condição é atravessada profundamente pela culpa, já que temos liberdade para sermos o que quisermos e quando não conseguimos chegar lá, significa que nós falhamos como indivíduos.
A culpa é um afeto que nos impacta quando nos damos conta, no capitalismo, do mau uso da liberdade. No contexto em que a culpa também é uma propriedade individual ela terá igualmente valor de mercado. Ela pode ser administrada nas caras terapias, refreada nos caros medicamentos e mesmo simplesmente negociada pecuniariamente.
[…] Em português usamos a expressão “pagar pelo crime”. Não resta dúvida, a punição no capitalismo é um pagamento. (pag 81)
A solução passa por muitos rompimentos, subjetivos e objetivos, mas ao final do livro, ele sugere que uma das saídas se encontra justamente no reconhecimento existencial da nossa falta de controle e poder sobre nossas próprias vidas quando olhamos só pra nós mesmas/os, e que a melhor forma de experimentar isso (que na teoria parece lindo) é coletivamente, criando relações onde tudo isso possa se manifestar.
Acolher nossas fragilidades, nos reconhecer como um tecido comum de vulnerabilidade é dar um caráter político à existência e fazer as diversas singularidades se darem conta de que a melhor forma de exercer a vontade de controle é lhe dirigindo a uma construção coletiva do cuidado. (pag 126)
Esse sentido de vulnerabilidade me agrada mais que o da Brene Brown rs. Mais do que apenas lutar individualmente para sofrer menos, é como podemos todo mundo junto, trucidar esse discurso de que você só tem valor se matando de trabalhar e adquirindo coisas que simulem um “venceu na vida”. Até porque quando tem 1 vencendo, obrigatoriamente tem 1000 se fodendo.
E vale lembrar que o culto ao trabalho/repulsa à preguiça é um discurso bem efetivo pra fazer a massa trabalhar, porque a elite em grande parte sempre foi preguiçosa pra c****** querendo ser servida 100% do tempo (e aqui no Brasil a classe média também). Ou seja, quando você tem gente que te permita ser preguiçosa não é preguiça, é merecimento porque você tá pagando. Mas aí na hora de chamar pobre ou grupos minorizados de preguiçosos…
Pra finalizar, como diz essa frase utópica que já virou pôster na Shopee, camiseta e bordado por aí:
❒ Não é vagabundagem, é pensamento crítico (e um pouco de ressentimento justo sim pq não): o grupo do reddit antiwork puxou muito as discussões dos últimos movimentos nos EUA. Tem depoimentos, memes, denúncias e apoio a sindicatos/organizações. No Brasil tem o grupo antitrampo pra quem quiser acompanhar.
❒ Lembrando que pra quem está dentro de organizações e quer desenvolver um olhar apurado e crítico do que está rolando no mundo do trabalho, eu e a Thati Cappellano vamos mediar esse curso livre aqui em março! Online e ao vivo, pela Cásper Líbero.
❒ Foi pré-lançado o livro Emprecariado (ainda não tenho e não li). Tem o prefácio do sociólogo Túlio Custódio, que estuda o tema e já deu aulas por aqui, e pelo título, pode ser interessante pro debate sobre o que estamos falando.
❒ E não teve como não lembrar dessa música ao escrever o texto:
Até a próxima!
Abraços,
Nat
news do Clima #10
Nat, obrigada por compartilhar sua reflexão sobre o livro, abri todas a abas aqui, e sempre na certeza que vou sair melhor de todas elas... Valeu!