Sejam bem-vindos e bem-vindas a mais uma news do Clima.
A curadoria mensal de conteúdos, divagações e cutucos pra gente não desistir e se interessar mais pelo que acontece fora do nosso umbigo.
Nessa edição: pavor da inteligência artificial, trabalhos de merda e pra onde podemos sonhar.
Ah, as palavras em laranja têm coisa, só clicar.
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Quem vale mais na fila do pão?
Pensar sobre o sentido do trabalho nunca fez tanto sentido quanto agora, quando parece que finalmente a água tá batendo na bunda de quem sempre acreditava que seus empregos estavam garantidos e a tal da carreira estável e aposentadoria eram metas plausíveis através de muito esforço.
Diferente de alguns trabalhos braçais ou repetitivos dos quais já naturalizamos a automatização, dessa vez é o trabalho cognitivo/criativo que tá levando essa rasteira - empregos antes valorizados porque demandam anos de aperfeiçoamento, estudo e o que chamam de inteligência.
Sim, agora que o ChatGPT e toda uma gama de ferramentas de IA estão na ponta dos dedinhos de qualquer mortal, muita gente começou a se questionar se serão os próximos a aumentar as estatísticas do desemprego.
Antes disso, a pandemia foi uma grande impulsionadora desse debate, afinal, diante de uma doença contagiosa que forçou a gente a rever modelos de trabalho (por um tempo), ficou mais óbvio quais trabalhos eram realmente essenciais para a nossa sobrevivência no semi-apocalipse.
Vamos dizer que um post sobre mundo do trabalho ou pensar sobre estratégia de marketing de um produto não iria exatamente salvar vidas naquele momento. E aí muita gente sacou o quanto trabalhos que atendem às nossas necessidades básicas e portanto, indispensáveis, são realmente mal valorizados, mal pagos e com pouca visibilidade e reconhecimento (exceto aqueles clássicos como médico e engenheiro).
Lá em 2021 rolou um post do Clima falando sobre essa questão da (des)importância dos nossos trabalhos, mas mais voltado a crítica ao “propósito”, justamente para a gente tirar o peso que existe em ter um trabalho ideal (como um que impacte positivamente, faça sentido, com plena realização pessoal, pague bem, etc).
Lá citamos uma fala do antropólogo David Graeber, que escreveu o livro Bullshit Jobs (“Trabalhos de Merda”), e definiu numa entrevista:
Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso - daí o elemento de merda. trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.
Ou seja, muitos e muitas de nós estamos dentro dessa definição ou perto dela. E diante da afirmação do mesmo de que “quanto mais útil é o trabalho, pior ele é pago”, com tantos problemas no mundo e a quantidade de coisa desnecessária sendo produzida e consumida, por que estamos perdendo nosso tempo precioso de vida fazendo coisas sem um sentido mais sistêmico?
A resposta pode soar óbvia - porque é justamente essa alienação da nossa relação com o trabalho que sustenta o modelo capitalista e já existe bastante teoria que pensa a essa desconexão e falta de sentido.
Pode ser que você goste do seu trabalho, lembrando que a crítica nunca é pessoal, a um indivíduo, mas sim pra um problema estrutural que temos, já que entendemos que existe uma massa de gente em empregos não muito dignos.
A tecnologia não deveria fazer a gente trabalhar menos?
Sim, mas não desempregar né?
A real é que sabemos que quanto mais produtivas/os somos, mais trabalhamos, e não menos. Acho que ninguém mais se ilude quando lemos por aí sobre novas ferramentas tech que vão facilitar a nossa vida.
Então acabamos cada vez mais sobrecarregadas/os, cansada/os e desacreditando que algum dia a gente consiga trampar menos.
Mas se a tendência é cada vez mais pessoas ficarem “obsoletas”, imagina como seria dividir então esse sobre-trabalho em 2 pessoas? Dessa forma teríamos mais vagas disponíveis e uma rotina menos extenuante. Utópico demais?
Por enquanto sim, já que estamos presenciando a demissão em massa em inúmeras empresas de tecnologia por pressão dos acionistas, que querem ampliar a margem de lucro, e vamos dizer que pagar bem os funcionários não é um caminho recomendado pra isso. Imagina então tendo que contratar mais gente?
Só existe esse jeito e cabô?
Na última sessão de terapia que tive, ficamos alguns minutos debatendo sobre o futuro da humanidade, entre uma conformidade do fim (já que não somos especiais e apenas um grão de areia na história do universo) e a crença de que somos capazes de nos organizar quando a coisa ficar (ainda mais) feia.
Trago isso pois justamente estamos diante de um colapso climático (já viram o último report do IPCC ou nem precisa?), altíssimos índices de depressão, ansiedade e burnout, problemas sistêmicos que não avançam (violências, desigualdade, machismo, racismo, etc) e um total desânimo com o nosso dia a dia de trabalho.
Então como o nosso trabalho se relaciona com esses temas (não vale ESG) e se responsabiliza por essas questões?
Então antes de trazer uma outra pergunta que ronda bastante as minhas viagens mentais, lembrei aqui do livro Os Despossuídos, da escritora Ursula K. Le Guin, que vira e mexe comento porque é uma leitura que vale demais fazer, por vários motivos.
Mas basicamente imagine uma história de ficção científica/especulativa escrita em 1974 onde são descritos dois planetas: Urras, no qual opera uma sociedade capitalista, e Anarres, um planeta com condições climáticas hostis com práticas anarquistas.
Nele, Le Guin imagina como seriam diversas relações sem o conceito de "posse”: não existe propriedade privada, relações afetivas e familiares são livres, e tudo é compartilhado, mas sempre respeitando a individualidade de cada um.
Uma das coisas mais legais pra mim da obra é que ela não tenta mostrar uma sociedade perfeita sob o anarquismo, mas apresenta contradições e problemas existenciais que naturalmente aparecem.
No entanto, queria trazer o conceito de trabalho apresentado ali: ele é visto como uma atividade voluntária, cooperativa e compartilhada.
De acordo com a sua capacidade, você se envolve com atividades essenciais voltadas à comunidade (agricultura, construção, educação, infraestrutura, etc), mas também pode se dedicar concomitantemente a atividades de desenvolvimento artístico e intelectual. Então o trabalho é motivado não pela recompensa financeira, mas pela solidariedade e bem-estar coletivo (e consequentemente, individual).
A satisfação reside no sentimento de fazer algo relevante
onde todas as pessoas estão envolvidas nessa de alguma
forma, ninguém fica pra trás e nem pra frente.
Beleza, é um livro de ficção, mas se é pra imaginar, como seria se nós tivéssemos que lidar com essa forma de organização?
Será que você iria ficar muito chateada/o em trabalhar alguns meses na construção de moradias ou com agricultura se você soubesse que sua comunidade iria se beneficiar com isso?
E sabendo também que você já tem o que precisa pra sobreviver, e que outras pessoas estão trabalhando em outras áreas que vão te beneficiar, será que acharia esses trabalhos inferiores, tal como acontece hoje em nossa sociedade?
Isso considerando que já existe tecnologia suficiente para automatizar trabalhos insalubres e/ou perigosos mas necessários, e fora isso, caso você não pudesse fazer trabalhos que demandariam certa disposição física por uma condição de saúde ou deficiência, isso não seria um problema, pois existiriam outras funções de acordo com as suas capacidades.
Utopicamente, esse parece um formato ideal, afinal, se tira grande parte do sofrimento que o trabalho causa, já que ele aqui não define a sua vida e quem você é, e as questões primordiais para um funcionamento justo da sociedade implicariam o envolvimento de todas as pessoas pertencentes à ela.
Mas é aquilo: pra isso ser possível, TUDO precisa mudar. Ao mesmo tempo, dá pra pensar: o que temos a perder?
Pensar o trabalho é pensar em TODAS as nossas relações, sem exceção.
A inteligência artificial veio pra ficar, e considerando que quem mais vai se beneficiar são os grandes conglomerados de sempre, é urgente uma reflexão que não fique só no “meu trabalho, meu futuro”, mas que vá mais fundo e encoste na nossa vulnerabilidade, assumindo que não estamos fazendo o que precisa ser feito, estamos perdendo tempo precioso de vida nos vendendo para funções sem sentido e o pior - não desenvolvendo todas as nossas potencialidades, essas sim que nos trazem tanta alegria de viver.
Justamente porque essas potencialidades precisam de liberdade e tempo para aflorar, dentro de uma crença de que absolutamente todo mundo tem algo para desenvolver e criar, e consequentemente, contribuir individualmente para o coletivo.
Né?
Hoje sem referências extras pra não encher de coisa :)
Até a próxima!
Abraços,
Nat
Nat, perdi o curso do Casper. Vc tem previsão de fazer outro?