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Sejam bem-vindos e bem-vindas a mais uma news do Clima.
A curadoria mensal de conteúdos, divagações e cutucos pra gente não desistir e se interessar mais pelo que acontece fora do nosso umbigo.
Nessa edição: sobre ocupar espaços, boas intenções e tentando encontrar culpados e saídas.
Ah, as palavras em laranja têm coisa, só clicar.
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ai de novo não.
Eu sei que às vezes autocrítica cansa e que talvez você só queria chegar aqui e ler algumas coisas que deixassem a existência um pouco mais palatável. Só que um dos objetivos dessa news não é tacar o dedo no seu olho e fazer você sentir culpa por ter nascido, mas o contrário - é dar um abracinho através do reconhecimento mútuo de que temos contradições e que o mundo pode ser um lugar mais legal se a gente reconhecê-las e entender as nossas responsabilidades e impactos por aqui a partir disso.
Então queria começar falando que talvez a reflexão de hoje não seja direcionada a todas as pessoas que estão lendo esse email.
Explico: hoje vamos falar sobre algo que perpassa a realidade daquelas principalmente pertencentes a uma classe média/classe média alta de grandes cidades.
Mas não por isso deixe de entrar no debate caso você não faça parte desse grupo, principalmente porque pode colaborar na reflexão sendo alguém que sofre/sofreu as consequências ou que observa de fora esse fenômeno.
Parece tudo confuso?
vamos lá.
Vocês já devem ter ouvido falar no termo gentrificação.
Se não, aqui vai uma breve explicação: segundo dados do site da FLLCH-USP, gentrificação é um termo emprestado do inglês gentrification (gentry significa origem nobre), usado pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass quando ela analisou a cidade de Londres, e pode ser definido como:
"processo de transformação e valorização imobiliária de uma zona urbana, que acarreta a substituição do tecido socioeconômico existente por outro mais abastado e sem condutas de pertença ao lugar".
(fonte: Dicionário Porto Editora)
Em resumo, podemos entender como a valorização de certos bairros considerados populares, no qual seus moradores acabam sendo expulsos porque não conseguem mais bancar a vida neles e são substituídos pela galera com mais grana. Soa familiar?
Como não sou arquiteta nem urbanista, tampouco estudiosa da área, vou me limitar aqui a uma observação pessoal da realidade, bem como leituras feitas por aqui e ali que vou indicar no final da news.
Esse fenômeno não é exclusivamente brasileiro, mas segue um processo muito parecido em todos os lugares: tá lá o bairro que não é periférico, habitado por imigrantes/migrantes e/ou trabalhadores que vivem ali por ser barato, normalmente meio esquecido pelo poder público e não tem muita infraestrutura.
Aí, diante do encarecimento de zonas já gentrificadas, um outro público com um pouco mais de dinheiro e outras referências culturais, é atraído pelos imóveis/aluguéis mais em conta: jovens universitários, artistas, dentre outros. Com novos empreendimentos culturais lançados por esse grupo (galerias, cafeterias, feiras, restaurantes, centros), o bairro se torna o hype do momento, “descolado”, e acaba na capa da Vejinha com algum título bem medíocre.
O mercado imobiliário, de olho já faz tempo, destrói 20 casas geminadas na calada da noite para lançar studios de 20m² com coworking e lavanderia compartilhada por 1 milhão, ou prédios neoclássicos com varanda gourmet.
Aqui em SP, a história recente da Vila Madalena pode exemplificar essas etapas: no início do século XX, era um lugar distante, com pouca infraestrutura e barra-pesada (tinha a alcunha de “Risca-Faca”). Com a chegada do bonde nos anos 40, se estabeleceu uma classe média/trabalhadora.
Nos anos 70, muitos estudantes da USP foram morar lá pelos aluguéis baratos depois da polícia da ditadura militar fechar o CRUSP (moradia da faculdade). Já na década seguinte, começaram abrir os botecos que deram a cara boêmia que fez o bairro famoso. Com isso, começou a atrair artistas, músicos, escritores, ateliês, lojinhas e bombar a tal da efervescência cultural.
Parece muito legal, certo? Mas é aquilo, com a fama chegou a grana, e os grafites que saíam em 9 de cada 10 fotos nos primórdios do instagram, bem como os lambes “gentileza gera gentileza”, involuntariamente foram um dos raios gentrificadores que resultaram no bairro tal como ele está hoje. Parece estranho, mas arte e cultura são a ponta de lança pra esse processo em vários lugares do mundo e a quem interessar esse artigo conta um pouco sobre (em inglês, a tradução automática dá conta).
Pode parecer um bairro interessante, mas não dá para negar que é povoado majoritariamente por pessoas bem endinheiradas, que em sua grande maioria acabam não se conectando coletivamente com nada e tampouco se preocupam com questões sociais, promovendo, mesmo sem saber, uma higienização do espaço, onde quem não se adequa não é bem-vindo.
Claro, simplifiquei bastante porque tem muito mais coisa envolvida em processos de gentrificação - construção de metrô, o AirBnb, revitalização de tal espaço, construção de grandes avenidas loteadas já pra grandes corporações, atração de nômades digitais, e esse processo pode rolar também nas periferias, quando são beneficiadas por programas de interesses público-privados (que no fim visam lucrar também com as transformações).
A escritora Bruna Maia fez essa ilustração há um tempo e representa bem esse raciocínio:
Existem vários tipos e caminhos de gentrificação. Peguei o exemplo da Vila Madalena especificamente porque representa um deles, que é uma gentrificação voltada pra esquerda ou da galera mas progressista.
Porque é aquilo, a gente pode desenvolver uma consciência crítica e tudo, apontar o dedo para a ganância das incorporadoras, pros caras com coletinho almofadado, pro Starbucks ou para a falta de políticas públicas decentes que evitem tudo isso de acontecer.
Mas a parte difícil e inconveniente é entender como nós (que talvez façamos parte de um grupo mais sensível para questões sociais ou que se interessa por isso), podemos sim estar participando da gentrificação em nossos hábitos de consumo, na maneira toda colonizada que a gente tem de olhar para outros grupos sociais, e o nosso ímpeto louco de ir em busca de experiências “autênticas”.
Dando alguns exemplos pessoais, não foram poucas as vezes em que cheguei num lugar e o pensamento que veio foi ”isso aqui tá meio errado”, no sentido que eu era um agente gentrificador simplesmente pela minha presença, mesmo sem postar nada ou ficar no canto. Lugares como uma casa-restaurante reformada e bonita em um bairro que é um dos últimos redutos onde antigos moradores ainda conseguem morar, ou um clássico da Barra Funda: bar recém-inaugurado supostamente despretensioso (e drinks caros) e no outro lado da rua um boteco com moradores locais, que você sabe que não vai sobreviver mais 10 anos lá nem ferrando.
Ou a experiência de ir pela primeira vez na Ocupação 9 de Julho e sentir que está invadindo um espaço de forma predatória, mesmo que eles promovam eventos semanais abertos justamente para aproximar quem é de fora, tirar o estigma que existe em torno de ocupações e politizar a questão da moradia popular. Mas mesmo assim, é possível ver lá dentro um tipo de turismo classista (“olha só que lugar descolado, lembra Berlim, olha como sou consciente, afinal estou numa ocupação”).
Nesse pacote, entra o gosto de frequentar bares pé-sujo (ou chinelagem como diriam as colegas do sul) e rodas de samba.
Por mais que não tenha como evitar essas situações, afinal, existe uma vontade genuína em estar em lugares sem pompa e querer gastar pouco, assim como encontrar pessoas que você considere legais e ouvir música boa (nada de mal nisso), temos de reconhecer que reside aí uma invasão (porque no fundo é um tipo de invasão) nesses locais dos quais não pertencemos e que estavam aí muito antes de nós.
Não é de hoje, por exemplo, que pessoas negras reclamam de pessoas brancas que começaram a frequentar rodas de samba, desrespeitam algumas regras básicas de boa convivência, ficam na frente atrapalhando, querem protagonizar ou coisas do tipo. O próprio samba é um tema dentro da gentrificação, como conta essa análise feita por pesquisadores, na qual constam que a expulsão da população negra dos bairros centrais, onde foram fundadas muitas escolas (Vai-Vai, Pérola Negra, entre outras).
Em outra linha, podemos pensar também na estética descolada e escolhida como “a legal” é justamente aquela que vai acabar ajudando o processo de encarecimento, porque em grande parte desses casos, a dinâmica de vida é toda pautada pelo consumo: de comida em bares em restaurantes, de produtos nas lojas, de bens culturais que precisam cobrar também, sem que venha junto uma construção de equipamentos públicos para o uso comum.
Eu sei que isso pode soar contraditório, porque por um lado, a ideia de misturar realidades em um território deveria ser algo positivo, já que se abre uma possibilidade de conexão com outras perspectivas e a luta em conjunto por uma causa comum. No entanto, por outro lado, é quase inevitável que esses espaços sejam contaminados por um tipo de capital cultural que quer se impor, mesmo sem intenção, já que estamos lidando com relações de poder, algumas sutis e outras nem tanto.
Podemos pensar na gentrificação em termos geográficos-espaciais mas também como uma ideologia maior: aquela que retira o que é de um certo grupo, normalmente com menos poder (aquisitivo) e o toma para si. Aqui podemos pensar na gentrificação dos estádios, dos centros das cidades, do carnaval e na aversão a tudo o que é considerado popular, num tipo de aporofobia disfarçada.
Essa reflexão vai muito além de expiar a culpa-pequena-burguesa, e também não se trata de apontar o dedo para o indivíduo, como sempre bato na tecla, porque no fim do dia a gente precisa focar na raiz disso tudo, que é a mesma de todas as desigualdades que permeiam a sociedade: as grandes corporações, o rentismo, o lobby, o poder público entregando as coisas pro privado e as origens disso tudo na colonização, escravidão, e por aí vai.
Mas tô trazendo porque não adianta a gente só denunciar a estrutura sem reconhecer o que há de internalizado dessa estrutura em nós. Pensar nisso implica vermos as contradições inerentes ao sistema e como a gente se deixa afetar por elas. Para a partir daí, repensarmos as formas com as quais a gente se relaciona com esses espaços, com as pessoas que os habitam e com nós mesmas/os.
Pensar na gentrificação demanda vir junto de uma consciência de classe, de raça, e das diferenças culturais e subjetivas que acontecem nesses espaços.
Então não é necessariamente deixar de viver ou frequentar lugares. Mas desenvolver um pensamento crítico para não normalizar certas coisas.
Se dentro do capitalismo, a gentrificação parece inevitável, como podemos pensar em uma redução de danos?
Na Europa existem alguns exemplos de iniciativas do poder público. Em 2020, Berlim onde só 18% das pessoas são proprietárias saiu uma lei que congela por 5 anos o valor dos aluguéis na cidade. Já em Barcelona, 30% das habitações de construções residenciais precisam ser destinadas para habitação social e comercializadas a preços regulados para compra ou aluguel.
A nível individual, talvez um caminho seja olhar com desconfiança para certos projetos de “retrofit”, para discursos que pregam revolução pelo consumo, e por ambientes que excluem aqueles que já são marginalizados do sistema. E também ter respeito por lugares onde você deseja pertencer, mas que já possuem uma história prévia de resistência e/ou que envolva grupos minorizados.
Esse artigo da jornalista Sabrina Duran é bem legal e ela fez uma lista de iniciativas aparentemente positivas ou inofensivas que devemos questionar. Escolhi alguns, mas vale ler a lista completa no link:
– patrocínio de bancos a transformações do espaço público
– apropriação de bandeiras ativistas por esses bancos
– policiamento cada vez mais constante e ostensivo em determinados espaços públicos
– discurso do gestor dizendo “retomamos a cidade” ou “retomamos a cidade para as pessoas” ou “devolvemos a cidade às pessoas”
– carro do sorvete socialmente responsável ou o caminhão que vende cachorro quente a R$ 25 [ou outros similares] estacionado em espaço público fazendo ação promocional para valorizar o espaço público/a comida de rua
– a inauguração de novos teatros/praças/centros culturais em regiões tidas como “degradadas” [equipamentos/edifícios culturais costumam ser “âncoras”, ponta de lança de processos de gentrificação]
– milagre da cadeira de praia: crença de que um novo mobiliário urbano [parklets e decks, por exemplo] é suficiente para eliminar contradições sociais históricas e transformar o não-lugar em lugar de lazer e convivência democrática e pacífica
– coletivo de cultura/arte aplicando, no espaço público degradado, ideia já muito utilizada com sucesso em diversas cidades do mundo
– ações pontuais-festivas com o mote da integração da humanidade pelo amor genérico e difuso no qual “até o mendigo” é bem-vindo
– em dia de evento coletivo-colaborativo-horizontal-no-espaço-público, criação do “mural dos desejos para um lugar melhor” (nunca o “mural da vida real que existe aqui, de pessoas e coisas que estão aqui mas que nunca foram ouvidas”)
– negros/pobres/pessoas em situação de rua/populações vulneráveis participando dessas ações pontuais na cota mínima aceitável, aquela que mantém o processo gentrificador, mas não pode ser tida como racista/higienista porque, afinal, “olha só, tem até negro/pobre/mendigo participando”
– crítica a qualquer pessoa crítica ao gestor ou às ações potencialmente higienistas, com acusações de radicalismo, negativismo e não-propositividade
– gestor se apropriando de termos de diversas militâncias e ressignificando-os em ações/projetos que, via de regra, contradizem o termo original [ex: tarifa zero; redução de danos; construção coletiva; diálogo aberto]
Por fim, habitação não deveria ser mercadoria e se queremos pensar em futuros possíveis, precisamos fazer perguntas que desafiem o que entendemos por justiça e abrir os olhos pro lugar que moramos e frequentamos.
Quem quiser compartilhar experiências, discordar ou acrescentar, só responder esse email :)
❒ O filme Aquarius é um clássico para pensar a gentrificação, nesse caso, do Recife.
❒ Esses artigos do TAB UOL podem ser legais para começar a pensar no assunto.
❒ Essa plataforma Arquitetura da Gentrificação do Repórter Brasil é bem boa.
❒ O artigo da Jacobin discute a importância da habitação social e como ela pode ajudar a resolver a crise habitacional.
❒ O último episódio do podcast Prato Cheio (do Joio e o Trigo) é foda, fala sobre o processo de mercantilização das cidades.
Bom hoje é só :)
Até a próxima!
Abraços,
Nat
news do Clima #13
Gentrification quem estava na minha cabeça e alugou um triplex nela. Reflexão singular.
Deu 30 nós na cabeça. Excelente reflexão.