Se descrever os próprios trabalhos com paixão e ganhar reconhecimento público pelo talento ou pela performance virou o sonho de muita gente, como vivem aqueles/as que não conseguem vislumbrar essa possibilidade, ou aqueles/as que habitam uma plenitude possível na falta de ambição ou ainda aqueles/as que não projetam a sua identidade no seu emprego?
Não tenho respostas, mas me questiono: será que no nosso modelo de vida hoje, a figura da pessoa mediana (não incompetente e tampouco desmotivada, só na média mesmo), pode representar uma forma de subversão a um sistema que se aproveita da ideia de que todo mundo é especial e que precisamos otimizar e maximizar nossos talentos fazendo algo brilhante para monetizar ao máximo nossa capacidade produtiva?
Com essa transição que o Clima está vivendo (vou contar mais ao final), a dúvida sobre o sentido do trabalho e de como colocar a serviço do mundo nossas habilidades vem com tudo e imagino que quase todas e todos nós mortais passamos por esse questionamento algumas vezes na vida.
Como estamos há dois meses refletindo pesado sobre esse tema no Desajuste, não tem como deixar passar alguns pontos que geraram mais comoção no grupo: às vezes o trabalho pode ser apenas um trabalho, e isso não nos impede de agir pra transformar o mundo no restante do tempo, e ainda pode evitar alguns burnouts e nos ajudar a aceitar incoerências em si e nos outros, já que entendemos as contradições que existem em nos manter vivos/as dentro do capitalismo hoje.
Mas é difícil gente. Porque desde o dia em que nascemos, escutamos da família, da escola, da tv, dos gurus, da religião, de tudo, que o esforço e o sofrimento sempre é recompensado, que os melhores vencem na vida e que, se o sucesso não chegar até você, é porque você está fazendo algo errado. E se você estiver na merda, precisa ser grato porque sempre vai ter alguém pior.
Recentemente vi 2 séries sobre histórias de “sucesso” do Vale do Silício, e só serviu para reafirmar o ranço sobre esse discurso do vencedor, a cultura startupeira do empreendedorismo salvador, daquela pessoa visionária (pra quem?) que usa discursos new-age sobre a necessidade de elevar a consciência humana ou revolucionar a vida das pessoas, quando na verdade, tudo não passa de um egocentrismo absurdo, essa vaidade sem vergonha que os investidores mais gostam.
Nesse caso, me refiro às obras The Dropout (Star +) e WeCrashed (Apple TV).
A primeira conta a história da empreendedora Elizabeth Holmes, que angariou milhões de dólares para financiar a Theranos, empresa que fundou prometendo revolucionar o mercado de exames laboratoriais ao realizar a coleta de apenas uma gota de sangue.
Durante os episódios, vai ficando a pergunta que sempre vem quando assistimos as histórias de picaretas: como as pessoas caíram nessa?
E aí você vai encontrando os elementos base que compõe essa persona que sempre sai a frente: o discurso sedutor do “mudar o mundo e ajudar as pessoas”, a stevejobização da aparência e da personalidade, a capacidade gigantesca de mentir e omitir sem o menor peso e a grande capacidade de liderar rebanhos para ganhar dinheiro e alimentar o ego.
O que é bem louco é ter gente poderosa e que teoricamente tem senso crítico, dando respaldo pra tudo isso. Quando vi que o documentarista Errol Morris, que dirigiu A Tênue Linha da Morte todo felizão fazendo o vídeo corporativo dela, fez pensar que todas nós somos passíveis de cair em alguns encantos.
Já o WeCrashed mostra a trajetória do também empreendedor Adam Neumann, que fundou a WeWork, aquela rede de coworking que se espalhou pelas cidades instituindo o padrão descolado de escritório - cadeiras coloridas, neon com mensagem motivacional, unicórnios, suculentas, happy hour e demais recursos para mostrar que o trabalho pode ser divertido.
O que mais chama a atenção nem é a pilantragem do homem, mas como ele realmente acredita na baboseira que declama, quase se autointitulando um guru, mas que dentro do puro suco do neoliberalismo apenas faz bem o trabalho da lavagem cerebral: gritos de guerra “eu amo segunda-feira”, promove a cultura da “ralação” e do “faça o que ama”, e com a postura otimista e confiante sempre, ama o risco e o livre mercado, afinal, porque não torrar a grana de investidores para realizar a sua grandiosa jornada pessoal?
Mas não dá pra não reparar no papel que a esposa, Rebekah, exerce quando estamos olhando pra típica jovem mística - ex professora de yoga mal paga, que depois de entrar em contato com essa brilhante ideologia ($$$), acredita ter a missão de “elevar a consciência do mundo” (que virou o propósito corporativo da WeWork), acha que o amor e a felicidade é só uma questão de respirar e vibrar positivo, e que autoconhecimento vai salvar o mundo (não, não vai).
Mas quando relacionamos com o mundo do trabalho, é possível perceber aspectos em comuns nas duas séries:
• a dominação de valores de mercado como aqueles que precisamos internalizar para sobreviver: aceitar o risco por conta própria, ser otimista, passar por cima do que for preciso, acreditar na na livre iniciativa como a melhor possibilidade de futuro, resiliência e flexibilidade.
• a moral do esforço e da felicidade como as bases para o sucesso: só depende de você querer, se motivar, e ter uma perspectiva de vida ensolarada, que a coisas acontecem.
• vender os empregos não como um trabalho, mas um lugar onde todo mundo gostaria de estar: você não trabalha pelo salário, pelos benefícios ou por estar em um ambiente ético e agradável, mas tudo é aspiracional, você participa de uma comunidade, luta por um propósito maior (que normalmente não tem nada a ver com o negócio em si) bem despolitizado e consequentemente aceita práticas abusivas e comportamento tóxicos.
As duas séries cansam e ficam meio repetitivas, mas vale ver para perceber como até hoje, muitos discursos se baseiam nessa mesma retórica - que já está em decomposição mas seguimos agarrados/as por achar que não existem alternativas.
E lendo o livro “Happycracia: fabricando cidadãos felizes”, do Edgar Cabanas e da Eva Illouz, fica clara a intenção das grandes empresas na manutenção do status quo através da ideia de trabalho como vocação para que a gente não olhe para as questões estruturais:
“…essa ideia de vocação - evocativa do protestantismo, disseminada na literatura de autoajuda e secularizada como busca e realização do eu verdadeiro - é agora amplamente oferecida como um antídoto para as incertezas ansiogênicas da nova ordem econômico-social. Mas também é proposta como uma oportunidade para que indivíduos cresçam como pessoas e desenvolvam ao máximo seus potenciais como trabalhadores.”
(citando o trabalho de Micki McGee).
Mês que vem teremos 2 encontros abertos para falar sobre esse livro, comigo e com o psicólogo André Lombardi nos dias 14 e 21 de junho, então bora ler!
Concluindo, tudo isso levanta mais perguntas:
Qual seria a relação ideal de trabalho dentro do capitalismo? ela existe? se sim, pra todo mundo?
Em um futuro desejado, como a gente se relacionaria com o trabalho, entendendo ele aqui como a atividade humana necessária pra gente sobreviver e viver bem?
Como abrir os olhos para certos discursos e perceber quando é boa intenção ou maquiagem de exploração?
Como lidar com a contradição de ter que trabalhar em lugares que não acredita e que fazem merda pra pagar as contas?
Mas voltando ao subtítulo da news, é de se pensar o quanto libertador pode ser aceitar que não somos especiais, que é bem provável que não seremos melhores em nada, que não necessariamente temos uma vocação, e mesmo assim, seja possível viver uma vida legal.
E por fim, algo que sempre ronda as reflexões por aqui: o sistema muda quando nossas subjetividade muda, ou o contrário, precisamos mudar o sistema e assim nossa rede de crenças, valores e comportamentos vão mudando? Ou é tudo junto numa troca não tão linear?
E agora contando sobre o futuro do Clima: alguns de vocês já sabem, outros não, mas o Clima vai sair da Perestroika no final do mês, e vai seguir de forma aberta e gratuita.
Para quem assina a newsletter paga, pode deixar que hoje mesmo irei cancelar as inscrições e todos e todas irão recebê-las gratuitamente a partir do mês que vem.
Ainda não foi oficializado pra geral, isso vai ser feito ainda nessa semana.
O projeto segue com os conteúdos, com a comunidade, com encontros e com essa news mensal aqui.
Para quem quiser saber detalhes ou tiver dúvidas, só me escrever, fiquem a vontade :)
De qualquer forma, agradeço demais o apoio e a confiança, e continuamos todo mundo junto aqui.
Alguns livros e filmes foram essenciais para ajudar a organizar as ideias em relação ao mundo do trabalho, e juntei aqui os que acredito terem uma linguagem mais acessível (não significa que são fáceis):
Livros
1. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico
3. Aprendendo a ser trabalhador
5. Saúde Mental e Moral Capitalista do Trabalho
Filmes
2. Doméstica
3. A classe operaria vai para o paraíso
UM DISCO
No fim de semana passado tive a oportunidade de ir no show do Mateus Aleluia, daqueles que entram uns ciscos no olho, e vale escutar esse disco que é bonito demais. E também saber mais sobre Os Tincoãs, grupo que ele fundou e que esteve ativo nos anos 60/70.
UMA CARTA
Vi esse fio no twitter do Jornal Literário Pernambuco, e achei bem legal trazer pra cá.
Em 2006, uma professora de ensino médio pediu a seus alunos que escrevessem para escritores/as famosos/as solicitando conselhos de escrita e o escritor Kurt Vonnegut foi o único a responder. Gosto pra caramba dele e pra quem curte uma ficção científica bem doidona e engraçada, recomendo demais os seus livros.
Segue aqui a resposta:
Querida Escola Xavier, Sra. Lockwood, e Srs. Perin, McFeely, Batten, Maurer e Congiusta: agradeço pelas cartas amigáveis. Vocês com certeza sabem como animar um velhote muito velhinho (84) em seus anos crepusculares. Não faço mais aparições públicas porque agora me pareço com nada menos que uma iguana.
O que teria a dizer a vocês, aliás, não demoraria muito, a saber: pratiquem qualquer arte, música, canto, dança, atuação, desenho, pintura, escultura, poesia, ficção, ensaio, reportagem, não importa quão bem ou mal não para ganhar dinheiro e fama, mas pra mas experimentar o devir, descobrir o que está dentro de vocês, fazer suas almas crescerem.
É sério! Começando neste momento, façam arte e façam isso pelo resto de suas vidas. Façam um desenho engraçado da Sra. Lockwood e deem a ela. Dancem em casa depois da escola, cantem no chuveiro e assim por diante. Façam uma carinha em seu purê de batatas. Finjam que vocês são Conde Drácula. Aqui vai uma tarefa para esta noite, e espero que a Sra. Lockwood os reprovem se não fizerem isso: Escrevam um poema de seis linhas, sobre qualquer coisa, contanto que seja rimado. Não há partida de tênis justa sem uma rede. Façam o melhor que puderem. Mas não contem a ninguém o que estão fazendo.
Não mostrem ou recitem pra ninguém, nem mesmo para sua namorada ou pais ou qualquer outra coisa, ou para a Sra. Lockwood. OK? Rasguem o poema em pedaços minúsculos e descartem os pedaços em recipientes de lixo amplamente separados.Vocês descobrirão que já foram gloriosamente recompensados por seus poemas. Vocês experimentaram o tornar-se, aprenderam muito mais sobre o que está dentro de vocês e fizeram suas almas crescerem. Deus abençoe vocês!
Kurt Vonnegut.
Ah, e não se esqueçam de frequentar a comunidade do Clima, só clicar no botão :)
É isso gente, até a próxima!
Nat