Sejam bem-vindos e bem-vindas a mais uma news do Clima.
A curadoria mensal de conteúdos, divagações e cutucos pra gente não desistir e se interessar mais pelo que acontece fora do nosso umbigo.
Dei uma sumida, mas voltei!
Nessa edição: calor pré apocalíptico, Burning Man e a nossa dificuldade em lidar com o que é difícil.
Não desista e chegue até o final <3
Ah, as palavras em laranja têm coisa, só clicar.
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TÁ CALOR, TÁ?
Se você mora no Brasil, existem grandes chances de nas últimas semanas você ter reclamado do calor, ou estar sob um ciclone extratropical, ou sentir que o fim está próximo. Ou tudo junto.
O engraçado foi ver o quanto o assunto sobre “não dá mais tempo” voltou com tudo, já que, pra quem não está acostumado a estar sob temperaturas escrotas em pleno inverno, existir ficou um pouco mais difícil.
Mesmo sabendo que o frenesi não vai durar muito tempo, essa súbita sensação de emergência sobre um aviso que está sendo dado há uns 50 anos e com muito mais desespero há uns 10, pelo menos fez algumas pessoas pensarem pela primeira vez o porque diabos a gente continua fazendo tudo igual e tendo preocupações tão mundanas quando tá confirmado que, se nada mudar, a gente tá MUITO fodido.
Mas o grande desafio dos cientistas, ativistas, ONGs e vozes que tentam dar uns tapas na nossa cara é justamente esse: não adianta mostrar foto de urso polar triste em geleiras derretidas, ou de crianças em enchentes em algum país do Sul Global, tampouco aqueles vídeos de tartarugas comendo canudos - nada parece fazer efeito - a gente até que fica meio em desespero sim, mas ele é suplantado pela ideia de que temos pouquíssimo poder pra fazer algo, já que a culpa não é nossa, e sim do 1%, e, portanto, o que nos resta é continuar acordando pra trabalhar, pagar as contas, se divertir um pouco e seguir vida.
Esses dias viralizou esse tweet que descreve justamente isso:
Existem algumas coisas pra considerar antes de comentar essa frase específica. Aqui no Brasil parece que temos questões tão básicas pra lidar e se revoltar (há 500 anos) fora o colapso climático, e mesmo assim, o país não para quando acontece esse tipo de coisa ou esse tipo de coisa. Então porque iríamos largar tudo pra enfrentar um problema que só vai se concretizar quando a água bater na bunda?
Sobre isso, uma escritora escreveu a coluna “Por que as manifestações pelo clima não decolam no Brasil”, que foi bem criticado por ignorar a luta histórica que milhares de pessoas de grupos organizados e coletivos empenham há décadas por aqui. Talvez o erro dela foi não ter aproveitado a oportunidade de divulgar esses grupos e quem sabe adaptar a pergunta para “Por que a classe média e classe média alta não participam de manifestações pelo clima”?
Essa pergunta envolve muitos pontos, desde a despolitização e o reacionarismo de grande parte dessa população, bem como o desânimo geral e os assuntos mais urgentes citados antes. E também pensamos: mas tá, se o rolê não é só mais reciclar o lixo, ser vegano e abolir o plástico, como fazer algo que vá fazer a diferença real?
Pergunta de milhões, sem reposta certa e caminhos definidos. Mas talvez vale entender como tudo se conecta: colapso climático, racismo, desigualdades sociais, fascismo, trabalhos de merda, epidemia de ansiedade e depressão - sim, tudo isso está interligado como uma consequência bem natural e esperada do capitalismo, que tem uma capacidade absurda de se adaptar e cooptar as pautas nascidas pra confrontá-lo: capitalismo verde, a balela bem grande parte dos discursos de diversidade e inclusão corporativa e institucional, romantização do empreendedorismo periférico, a renascença psicodélica…e por aí vai.
A ideia do curso do Clima de 2022 (que não deu certo e acabei desistindo) tinha justamente essa vontade de fazer essa conexão pra gente não cair no conto de white saviors, ongs liberais, e de demais protagonistas dessas causas que performam bem no feed, mas que acabam servindo pra manter o mesmo sistema que fode com 99%, pagar de cool e “engajada”.
E também de dar um tipo de esperança ao ver que quando a gente tá junto falando sobre essas coisas, algo muda, algo pequeno mesmo, no sentido de sair de uma passividade total pra uma vontade de entender mais e querer fazer parte de algo.
Mas pensando no público dessa newsletter, que acredito fazer parte de uma parcela pensativa crítica desses problemas, me vem um chute que vocês podem compartilhar aqui depois se faz sentido ou não: que a gente só vai se mexer de verdade quando estivermos em uma situação já limítrofe.
O que chamo de se mexer aqui é realmente parar tudo, se juntar de alguma forma a iniciativas já existentes de combate (e que sejam antissistema) e criar juntos novos jeitos de existir.
Vou reformular a frase: quando a gente tá um pouco confortável, não tem muito porque a gente se mexer. E confortável não quer dizer que tá fácil. Pode ser que você tenha ansiedade, exaustão, trabalhe pra caralho, lute todo mês pra pagar as contas. Mas confortável aqui é ter o mínimo pra levar a vida. Porque o difícil pode ser confortável sim.
E é talvez por isso que grande parte das iniciativas de luta e de construção de sistemas alternativos na prática venham justamente dos que vivem em zonas do “não ser”1, ou seja, daqueles grupos que vivem a margem do sistema e não tem outra opção a não ser resistir em suas diversas formas (povos originários, quilombolas, alguns coletivos periféricos, zapatistas, Rojava, etc).
E sabemos como o capitalismo consegue DEMAIS dar umas migalhas pra nos fazer sentir um conforto suficiente (ainda que ruim) e assim preferirmos deixar as coisas “fluirem”, mesmo que a gente discorde dele. E ainda permite uns ativismos a la Greta Thumberg porque sabe que só faz cócegas nas estruturas.
O QUE VALE É A SELFIE
E pensando aqui nas cooptações do sistema, na vontade de pertencer e participar de transformações sociais, e somando a isso, os eventos climáticos extremos, nesse ano até o Burning Man sofreu as consequências do aquecimento global, causados pelos bilionários, que possivelmente tem alguns representantes frequentando esse mesmo festival.
Se você não sabe o que é o Burning Man, tem um bom resumo com um olhar bem crítico aqui.
Mas basicamente é um festival californiano que rola no meio de um deserto desde os anos 90, com uma proposta experimental e um tanto anárquica, mas que hoje se transformou em um playground de gente branca com dinheiro que quer experimentar uma “vida livre e comunitária” por alguns dias antes de voltar a seus empregos acolchoados, e é/foi frequentado por singelas personalidades como Mark Zuckerberg, Larry Page, e alguns magnatas adeptos ao chamado anarcocapitalismo e outros entusiastas da “liberdade radical”.
Você pode até ser uma pessoa que frequenta. Ou tenha amigos que vão. De novo, a crítica nunca é individual, mas sim para a rede de significados e o que está simbolicamente representando, já que muitas vezes passa desapercebido e que é importante a gente se ligar.
Para entender melhor como a ideologia do Vale do Silício cabe muito bem dentro do festival hoje, recomendo a leitura do ensaio A Ideologia Californiana, de 1995, e que ajuda a entender esse pedaço da história. Dá pra baixar gratuitamente aqui.
Claro, não é todo mundo que frequenta que concorda com essa mutação do festival, mas acaba sendo inevitável que um rolê que era gratuito e hoje é caríssimo para participar e sobreviver lá dentro, acabe limitando o perfil do público.
Além disso, como todo movimento ou iniciativa que se propõe a ser contracultura, quando não tem uma ideologia política CLARA, acaba atraindo um tipo de público que cai no conto da neutralidade e que o bem vencerá o mal, entre outras abstrações.
A última frase do artigo descreve bem isso:
Quando “liberdade” e “inclusão” são desconectadas da democracia, muitas vezes levam ao elitismo e ao fortalecimento do status quo.
Embora não saiba o que o autor do texto considere como “democracia”, eu acrescentaria que: quando essas palavras são despolitizadas, liberdade vira “liberdade pra mim e foda-se o resto” e inclusão significa “deixa uns poucos participarem, desde que não incomode e eu não tenha que abrir mão de nada”. Nesse ano, ironicamente, teve até protesto ambiental contra os burners, acusando-os de poluir mais o planeta.
Eu não teria nada contra o Burning Man se ele simplesmente se assumisse como um lugar pra se divertir e só, sem a pataquada de “mudar o mundo” ou “ser subversivo”. Porque hoje de subversivo ele não tem nada, justo pelo contrário. Acaba se transformando em uma grande apropriação cultural e discursiva na mesma linha daquele vídeo do moço que vai nas baladas do ritual de cacau e outros grupos-seita que acreditam que estejam a frente da mudança de mindset, quando você vê lá um público bem….homogêneo e até reacionário, vamos dizer, que não curte muito ouvir críticas porque são muito “bad vibe”.
Mas na era do ativismo performático dos likes, precisa sair bem na foto e mostrar que está fazendo alguma coisa ou liderando algum movimento.
Eu entendo a nossa necessidade desesperada de pertencer a algo, afinal, o neoliberalismo fez e faz questão de desmantelar qualquer rede de bem-estar coletivo ou estruturas sociais que beneficiem o todo, em nome de uma liberdade que é “cada um por si” e tem a alta performance individual mais valorizada do que qualquer coisa.
Mas será que é esse o caminho de experimentação e transformação?
5 DICAS PARA ABRAÇAR O APOCALIPSE
Não existem muitos tutoriais de como lidar com o fim do mundo, mas além de ouvir o que essas pessoas das zonas do não ser tão tentando nos falar há tempos, sempre lembro desse texto da psicóloga e ambientalista Joanna Macy, traduzido pelo Marcelo Scheinberg pra um curso que fazíamos lá por 2017, que fala sobre formas que podemos começar individualmente a lidar com tudo isso.
Apesar de curtir, o perigo que reside nela é cair num discurso também despolitizado, que não olha pros reais responsáveis pela catástrofe, correndo o risco de individualizar a solução. É possível lê-la em conjunto com outros autores e autoras que permitam essa conexão crítica entre micro e macro, que podemos encontrar em Fanon, bell hooks, Donna Harawey, Ailton Krenak, Paulo Freire, Mark Fisher, entre outros/as milhares que existem por aí.
Uma reflexão que me acompanha ultimamente, recém-saída de mais um curso-conversa da Carol do Filosofia para Porcos, foi a questão da resistência do pensamento - dentro de estudos de Deleuze e Espinosa - não se tratando de um conformismo na ação, mas entender que se dispor a transformar a nossa estrutura de pensamento é algo válido e que é possível ser desenvolvido nessas trocas constantes. Recomendo demais pra quem é aquela pessoa que nunca abre a boca em cursos então prefere turmas pequenas e gente bem de boa pra conseguir falar (eu).
Otimismo não é bem a palavra que descreve uma forma saudável de lidar com tudo isso. Mas entregar os pontos e entrar num niilismo não faz o menor sentido pra mim.
Sei que faço parte das pessoas que estão em um nível de negação do problema, e que tenta levar uma vida sem grandes aspirações diante do colapso, mas reside aí um conflito eterno entre o esforço para não surtar e a ideia de que nunca estou fazendo o suficiente, ou o que eu “deveria” fazer.
Aproveitando o gancho do curso, e pensando sobre a importância de ter uma visão de mundo urgente para esses fins, finalizo aqui com o trecho de uma entrevista com o Deleuze no qual ele define o que seria ser de esquerda:
Acho que não existe governo de esquerda (…) não é que não existam diferenças nos governos, o que pode existir são alguns governos favoráveis a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda, ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas.
Primeiro, é uma questão de percepção.
A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que a situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam “os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?”
E ser de esquerda é o contrário. É perceber — dizem que os japoneses percebem assim, não veem como nós, percebem de outra forma. Primeiro eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente — europeu, por exemplo — depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte (…). E sabe que não pode durar, não é possível. Que milhares de pessoas morram de fome, isso não pode mais durar, não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais, que farão com que o terceiro mundo … Ser de esquerda é saber que os problemas do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Pra mim ser de esquerda é isso.
Até a próxima.
Abraços,
Nat
termo que peguei do Ramon Grosfoguel (que pegou do Franz Fanon) no livro Territórios em Rebeldia, do Raul Zibechi.
Texto ótimo, simples e pertinente, trazendo a luz questões que hoje estão em evidência maior, mas que realmente há anos veem sendo debatido. E será que com a “água batendo na bunda” as pessoas irão se mobilizar, ou depois que acho eu essa onda de calor intensa minimizar elas vão esquecer e continuar a ignorar os sinais de que o mundo precisa mudar?