Sejam bem-vindos e bem-vindas a mais uma news do Clima.
A curadoria mensal de conteúdos, divagações e cutucos pra gente não desistir e se interessar mais pelo que acontece fora do nosso umbigo.
Nessa edição: o discurso da salvação, ansiedade frente à ebulição e tentar fugir da apatia.
Ah, as palavras em laranja têm coisa, só clicar.
Pra quem cansou da gente, é possível se desinscrever a qualquer momento lá embaixo.
Dei uma sumida (de novo) e voltei, confesso que com bastante esforço, porque se não escrevo aqui, não escrevo em nenhum lugar, e fica tudo embolado na cabeça (não recomendo).
Essa news já foi e voltou pro rascunho mil vezes, porque fico achando que esse tema já deu no que tinha que dar.
Sempre tenho a sensação de que esse assunto tá tão no repeat que ninguém aguenta mais, mas aí lembro que grazadeus ninguém mora dentro da minha cabeça, e às vezes, o que eu acho “velho” é só um produto da minha mente acelerada e saturada de informação.
Então bora falar sobre esse cair das fichas do chamado fim do mundo (que conhecemos).
Pra quem usa gmail, provavelmente você terá que clicar lá embaixo no “view entire message”, porque parece que excedi o tamanho de texto que eles permitem ver de uma vez. Mal aí.
entre o niilismo e o pollyanismo
Como já conversamos há algumas edições atrás, existem muitas camadas existenciais quando pensamos nas condições climáticas que estamos passando e no sentido da vida diante de uma possível reestruturação de possibilidades de futuro.
Mas hoje queria focar em alguns pontos que tenho matutado e que talvez possam nos ajudar a problematizar um pouco sobre algumas armadilhas discursivas e soluções milagrosas: (1) trabalho e consumo (2) mercado e influencers “do bem”, (3) ansiedade climática, (4) surto de classe. Sim, porque esses 4 tão junto numa teia só.
Tudo isso pensando nos muitos meios-de-caminho existentes entre o tacarmos o foda-se e declarar que nada mais importa, e a ideia de que vamos sair dessa porque “naturalmente” seres humanos sempre dão um jeito, basta vibrar positivo e entrar na frequência da abundância.
#1 não pare nunca, crescer é o único caminho
Já fazem uns séculos que uma galera vem falando sobre alienação do trabalho, mas trazendo de uma forma mais simplificada pro contexto atual, tirando o 1% de sempre, tá todo mundo trabalhando cada vez mais, cada vez mais esgotado, em empregos que se não existissem provavelmente não iriam fazer a menor diferença, enquanto assistimos a um monte de desgraça sem poder fazer muita coisa.
Já coloquei essa imagem no passado em vários encontros do Clima, porque define bem a falta de sentido de trabalhos de escritório ou qualquer um que signifique ficar com a bunda numa cadeira por 10 horas na frente de uma tela fingindo que não sabemos do renascimento de vírus e bactérias mortais vindo com o derretimento do permafrost.
Não é culpa sua nem nada, afinal, contas a pagar.
O que me consola minimamente é que o discurso de encontrar propósito no trabalho está indo por água abaixo (pelo menos dentro da bolha que um dia existiu) e que os burnoutados tão tudo caindo na real - que talvez valha a pena trabalhar o mínimo pra ter uma vida digna e deixar os idealismos pra depois de bater o cartão.
Não que todos os tipos de trabalho sejam iguais, e sabemos que uns impactam positivamente mais que outros, mas essa ideia que dá pra vender a sua mão de obra e salvar o mundo ao mesmo tempo é um tanto irreal.
Até porque é meio impossível ganhar dinheiro e ser 100% sustentável ou coerente - em algum lugar da cadeia a gente estará ferrando algo ou alguém, mesmo que indiretamente. Se não está, provavelmente a sua conta bancária corresponde à essa pureza moral.
Ou seja, não sofra tanto tentando encontrar um trabalho que te faça se sentir com menos culpa diante da emergência climática, porque a não ser que você tenha herança, salvas as excessões, provavelmente terminará em ONGs mal pagas e abusivas ou ralando o c* e perdendo cabelo tentando empreender em algo que faça sentido pro mundo.
Soa radical demais? Talvez.
Mas pensa comigo: que tipo de produto ou serviço que é anti-sistema consegue sobreviver ou dar $$$?
Isso nos leva ao próximo ponto:
#2 não vai ser o 🍀 lifestyle nature-friedly 🍀que vai resolver a parada (e não existe empresa sustentável)
A eclosão de gente cagando regra de boas condutas em vídeos de 2 minutos fez surgir essa nova categoria contraditória de personagens: gente com boas intenções, pregando um estilo de vida mais “simples”, mas, ao mesmo tempo, ainda promovendo o consumo (mas agora verde) e se monetizando em cima de uma estética ainda elitista, sem trazer pro debate uma perspectiva de mudança sistêmica, e que talvez só está nesse lugar porque teve todos os acessos possíveis.
Muitos acreditam que o que vai salvar o planeta vai ser consumindo conscientemente e tomando banho de 3 minutos. Basicamente uma Whole Foodização da existência.
Dia desses surgiu um comentário sobre se vale a pena fazer essas coisas ou não:
Sim, é só um tweet e não um tratado sobre o tema, mas acredito que pode ser muito mais coerente fazer todas essas coisas porque elas pertencem à uma certa ética que você acredita, sabendo das limitações, do que atrelar uma superioridade moral à atitudes individuais, que já sabemos onde vai dar: a nossa postura pessoal, mesmo com ares de salvador, só serve pra massagear nosso ego e espiar a culpa de ter uma certa vantagem social em um mundo em frangalhos.
Já dentro das grandes empresas, o chamado ESG vem sendo a nova roupagem pras corporações fingirem que não estão dormindo no ponto, demonstrando em relatórios a suposta consciência social (com ações de D&I rsrs) e ambiental (comprando créditos de carbono rsrs), enquanto conseguem manter o lucro dos acionistas diminuindo custos (a.k.a demissões em massa e terceirização), precarizando o trabalho e conservando ambientes abusivos com metas irreais e chefes escrotos.
A ideia não é te convencer a jogar papel no chão e trabalhar na Vale, mas é de novo, não entrar em pânico por esquecer a ecobag e pedir com muito constrangimento uma sacola plástica no caixa, não julgar quem compra na Shein porque nunca teve acesso a roupas bonitas, como também parar de pagar mico nas redes sociais falando que tem alagamento “por causa da população sem educação que joga lixo na rua”.
Porque atitudes individuais importam sim, mas só se elas vierem junto de uma conscientização social e política de como o mundo funciona, entendendo quem são os reais culpados por estarmos na merda.
Outro dia vi esse material magnífico da BBC:
A cara nem queima né? Amo como usam “Humanidade” como •suspeito•, como se fôssemos essa grande massa amorfa de gente malvada que está sugando os recursos do planeta, e não o 1% de fdp que está zero preocupado com o futuro quando não estiver mais aqui.
Sim gente, e esse 1% é aquele que tem tesão em uma filantropia enquanto pega jatinho pra jantar num restaurante novo em algum país lá na esquina. E sinto informar que, muito provavelmente, a cabeça deles deita na mais santa paz no travesseiro, enquanto a sua vive a base de clonazepam.
#3 mais um tipo de ansiedade que em breve entrará na lista de transtornos oficial no psiquiatra mais perto de você
E diante desse caos todo, surge o termo ecoansiedade, ou ansiedade climática, que pode ser descrita como “o sofrimento relacionado às preocupações com os efeitos das mudanças climáticas”1. Basicamente o pavor e a paralisia que é lidar com a possível extinção da espécie e condições de vida muito bostas para nossos filhos e netos (ou pra você se tiver 20-).
A coisa anda bem oficial, e segundo a matéria linkada, universidades já oferecem um curso sobre “luto ecológico”:
“Ele fornece a seus alunos ferramentas como rituais de luto e exercícios de atenção plena para ajudá-los a lidar com suas emoções”
Fiquei curiosa para saber se falam nesse curso sobre capitalismo, papel das corporações e políticas públicas.
Tem alguns pontos que podemos pensar sobre isso: primeiro, se está todo mundo tão cansado de trabalhar e cuidar da própria vida, que no fim do dia só quer um pouco de conforto no Netflix ou algum tipo de diversão alienante, a ansiedade pelo colapso climático só é mais uma camada pra um batalhão de gente já ansiosa e medicada.
Afinal, nada mais justo querer cuidar do pouco do bem-estar que resta e tentar ter uma vida digna, dar aos filhos (quando se tem) um sentido e alimentar as esperanças como pode.
Ou seja, de onde pode daí sair a revolta para parar as máquinas e reivindicar e imaginar um outro futuro? A conta não fecha.
Segundo ponto é: para que sempre viveu em um contexto de desigualdade social e suas consequências (violência, pobreza, desamparo), talvez não faça sentido falar em em ecoansiedade. Já existe uma ansiedade anterior, da luta pela sobrevivência, uma vez que são essas pessoas que mais se ferram com as consequências da chamada ebulição global.
E isso tem nome: racismo ambiental, que no caso recente com a ministra Anielle Franco, fizeram chacota por não entender muito bem o significado do termo.
O que nos leva ao próximo tópico:
#4 a água bateu na bunda de quem viveu tranquilo até agora
Será essa comoção e essa forma paralisante de olhar para o futuro algo exclusivo de pessoas com uma série de privilégios2, que, ao darem de cara pela primeira vez com a sua existência em risco, dão uma surtada?
Penso que todos estão lidando com essas questões internamente como podem, e respeito o caminho individual de cada um, porque sofrimento é sofrimento e não se compara.
Sem dúvidas não dá pra generalizar, e, em algum nível, a ansiedade pelo futuro atravessa raça, classe, gênero, etc.
Mas há uma dimensão aí a ser observada, principalmente vendo gente do norte global se manifestando. Semana passada circulou um corte de uma entrevista da Rita Von Hunty, no qual ela descreve o depoimento de uma pessoa conhecida da Suíça ou coisa assim, que largou o trabalho no ativismo climático e fugiu pra roça dos Alpes pra viver do que a terra dá porque “só temos mais 3 anos”.
Nem cabe aqui criticar a Rita porque não vi a entrevista inteira, mas temos visto um tipo de performance de “resistência” que de resistência não tem nada, é só derrotismo puro de gente que não consegue sair da redoma e acredita portar uma superioridade moral por “enxergar as coisas como são”. Nesse caso, acredito ser um tipo de negacionismo também, ao ignorar todas as outras formas de resistência que já existem ou mesmo batalhar de algum jeito por algo totalmente novo.
Penso demais em como seria ter nascido em um país que chamam de 1º mundo, onde você não precisa lidar com as desgraças naturalizadas por aqui, e portanto, tem tempo e energia disponível para pensar na existência e lidar com esse colapso (ainda que com uma perspectiva bem colonizadora e individualista).
Porque talvez, ao encararem os dados e darem de cara com o cancelamento do futuro brilhante que estava “garantido” até pouco tempo atrás, não dão conta e espanam.
Não tô falando que só gente branca tenha esse tipo de ansiedade, embora esse artigo simpatize com essa perspectiva, mas se essas pessoas estivessem no seu dia a dia encarando a desigualdade social no nariz e não na televisão, talvez fugir e aceitar o apocalipse passivamente não seria uma escolha razoável.
Concluindo, mais do que simplesmente olhar e tratar a “ansiedade climática”, seria mais efetivo entender que as principais ansiedades hoje são sintomas de um mesmo sistema que adoece. Então não é sobre “salvar” o clima e sermos indivíduos sustentáveis, mas se atentar de que, enquanto as estruturas continuarem as mesmas, não vai ter jeito. Por isso que um discurso empolgante ativista em DAVOS não faz sem cócegas.
mas nesse caso, o que seria “fazer alguma coisa”?
Já falamos um pouco disso em alguma edições, mas acredito que esse “fazer algo” pra mudar ou melhorar o mundo não é exatamente metrificável porque depende muito do contexto social de cada pessoa e da capacidade emocional de lidar com o que é difícil.
Para algumas pessoas, fazer algo é jogar sopa na Monalisa, para outras é trabalhar com temas de transformação social ou se juntar a algum coletivo que milita, e para outras é reciclar o lixo.
Acho que não faz muito sentido julgar individualmente quem faz mais, quem faz menos, mas sim em que discursos ardilosos estamos acreditando em nome de um “melhor isso do que fazer nada”.
Porque muitas vezes, essas iniciativas bem intencionadas acabam por ser um desserviço por esvaziar a carga politica e contestadora do que é realmente subversivo, para domesticar até o ponto de ser mercadologicamente palatável. Tal como o produtor musical Rick Bonadio exemplificou em um tweet:
Como gosto de analisar as apropriações de marcas à causas, fiz uns prints há bastante tempo (exceto o story que foi por agora) e finalmente dá pra usar.
Antes de qualquer coisa, gostaria de deixar claro que tenho certeza que os grupos originários envolvidos foram beneficiados de alguma forma material com essas parcerias, o que claro, configura o mínimo.
Mas queria chamar a atenção para a palavrinha em comum em todas elas. Vou continuar o texto depois da imagem pra vocês poderem localizar.
Bom, ficou meio na cara né?
A palavra ancestral e seus derivados já tão na mesa do marketing faz tempo, alimentando essa ideia de que é possível fazer negócios dentro desse sistema e o bem ao mesmo tempo.
Porque se der uma fuçada básica no histórico, nenhuma empresa se salva aí nesses prints.
A provocação é mais no sentido da gente questionar o que achamos legal, o que compartilhamos nas nossas redes como um discurso válido e o que acreditamos quando consumimos determinados produtos.
Não custa falar o óbvio, e é sempre bom relembrar que
O CONSUMO DE MARCAS BILIONÁRIAS NÃO VAI SALVAR A HUMANIDADE
Na real, nenhum tipo de consumo vai resolver nada.
Seria então uma solução dar o dinheiro que gastaria numa blusa direto para organizações de luta indígena? Ou pensar em como não colaborar para transformar conhecimentos de grupos que tão sendo exterminados HOJE, em produtos e serviços que não proporcionam um pensamento crítico sistêmico para essas causas?
Compartilho todas essas paranóias com vocês, porque longe de um reacionarismo ou conformismo, me sinto meio estagnada, inclusive me questionando “ué, mas você não tá fazendo nada, quem acha que é pra criticar?”, entre a falta de energia pra engajar - porque me sinto presa na rotina de trabalho e descanso alienante -, e a sensação de que só tô inventando desculpa racionalizando algo que é do corpo: vai lá e mexe a bunda.
Precisamos considerar que essas reflexões que trago cabem muito mais aos leitores/as habitantes de médias/grandes cidades, e que não estão com a corda no pescoço - porque pra muita gente o mundo não está acabando, mas já acabou faz tempo.
Não custa falar de novo que formas de vida mais sustentáveis, igualitárias e coerentes já existem, mas que justamente por isso são recriminadas, rejeitadas, e enterradas sempre que possível para que a gente não consiga imaginar um outro mundo que não esse.
Dia desses tava ouvindo esse episódio antigo do já bem indicado por aqui Balanço e Fúria, onde fala sobre como o movimento punk sempre transitou entre as ruínas e tem a capacidade de “se apropriar do pesadelo“, como eles falam. Recomendo.
Apesar do punk ter sido (e ainda ser) um movimento majoritariamente masculino, e que em algum nível também foi apropriado e esvaziado pelo sistema, trago aqui pra não deixarmos de conhecer diversas formas de resistência dentro de um contexto urbano, principalmente através da arte, que lidam com esses fins de mundo.
Também conheci recentemente esse perfil do Edivaldo Alcantara, que traz vídeos bem legais sobre agroecologia tocando na ferida que poucos ousam, que é esse aqui abaixo:
Para encerrar que já tá parecendo um tratado, vale dizer que as redes sociais tem um papel fundamental em desanimar e alienar qualquer mortal, e que se nós não sentíssemos que precisamos prestar conta publicamente de tudo para todos, talvez os rumos seriam outros.
O que quis trazer não é um pessimismo entreguista, que diz que não adianta fazer mais nada porque ferrou, mas um alerta para a gente tentar fazer diferente, conhecer e incentivar movimentos radicais (radicais no sentido de estarem à margem do sistema, e claro, sob princípios éticos e valores que compartilhamos) e estarmos dispostos/as a rever algumas crenças que nos apegamos com medo do que está por vir.
Obrigada pelo saco de ter chegado até aqui.
Espero não demorar tanto até a próxima.
Abraços,
Nat
Harvard Health Publishing
Eu, você, e provavelmente grande parte dos assinantes da news.
Nat, eu adoro suas reflexões! Foram tantos tópicos que já nem sei por onde começar a comenta-los e se faz sentido. Acredito que essa ecoansiedade é muito própria de uma classe social mesmo. Moro na periferia e aqui, como vc disse, a luta é pela sobrevivência e não há acesso e tempo para esse tipo de reflexão. Essas marcas as pessoas consomem via camelô, querem só a logo estampada, pouco importando as ações de marketing verde. É tudo muito triste. Por todos os ângulos que olhamos esse assunto: triste.
Nat, o assunto é tão complexo que merece textão mesmo. Suas news são ótimas. Eu trabalhei anos na indústria do petróleo e foi isso que me deu independência financeira para viver minha vida longe de um lar emocionalmente abusivo. Nessa hora não importa de onde vem o dinheiro, a gente só quer conseguir ganhar para tentar ter uma vida mais feliz. Hoje em dia estou em uma situação que me permite olhar para os impactos da indústria petroleira de maneira mais crítica, porém faria tudo de novo se fosse preciso. Me perguntei várias vezes se era legítimo ter vivido na indústria e hoje em dia estudar sobre impactos ambientais...automaticamente deu uma sensação de farsa...mas por fim fiz as pazes com isso, porque afinal a outra opção seria ficar paralisada. Obrigada por trazer suas reflexões sobre o clima, sempre que chega email com notificação já abro logo para ler! Abs!